17.1.15

Pequenas desistências




Pergunto:
Depois da barba, o chuveiro? Depois do descanso, o trabalho? Após o sexo, o amor?
E por que não?                                                                                                                    
Canso-me diariamente na inversão da rotina tão laboriosamente engavetada nos arquivos do tempo de todas as sociedades. Se o faço por teimosia ou cálculo, realmente não sei.
Você é um menino tolo e mimado, ela me diz. Os olhos em mel escorrendo por mim docemente. A ponta da língua a passear distraída por entre os lábios, a unha do indicador a desenhar meus ombros.
Deixo-a na cama e saio de casa.

Sigo a pé para o trabalho. É longe. As vitrines passam, os prédios, as pessoas, os carros passam. Passam todos. Passa passa gavião todo mundo é bom... as crianças nunca deviam crescer. Brincar de roda, girando cada vez mais depressa... uma zonzura boa na cabeça. Currupio arrepiou, aiêêê!!!
Chego ofegante. O suor exala, misturado ao odor do desodorante, da loção de barba, escorre no peito.
Quinze minutos na fila do elevador. Faces estranhas, distantes, cansadas. A porta se abre e entramos, dois a dois, obedientemente. Passa, passa, passaraio, que me deixe eu passar, se não for o da frente há de ser o de trás, trás, trás... O seio macio da loira, roçando em meu cotovelo. A caspa do ascensorista em meus olhos. A velhinha cheiro-de-alfazema em meu nariz. Uma coxa roliça encostada à minha. Respirações a meia força. É proibido fumar. Acendo o cigarro. Hei, cara, qual é a tua? Sou alérgica a essa droga! Reclama? No fundo do olho, o sorriso. O colant agarrado a cada poro, uma segunda pele rubra.
Nono andar, quem vai?
O colant passa por mim, roçando de leve. Não vai descer? É, vou.


 Fora, apago o cigarro, olho o relógio no corredor. Outra vez atrasado.
Porra, cara, não dá mais pra segurar tua barra. O patrão já perguntou por você umas três vezes, mandou tu ir lá na sala dele assim que chegasse. Tá uma arara!
Vou até à máquina de café e tomo um e mais um e ainda um terceiro. Pingo preto na camisa. Mas, será possível, menino, que você tem sempre que sujar a roupa, quando come? Parece que tem boca mole... Cruzes!
Pelas imensas janelas entra o sol, o azul intenso, o ar morno da primavera. Prefiro a noite. Sempre. O néon, o mercúrio, a lua. Todo mundo mais bonito, carregado de mistério, diferente...
Entro na sala acarpetada, espero alguns segundos. Entro, ao ser chamado, e antes que ele abra boca, peço a minha demissão. Sou atendido, sem perguntas. Nenhuma explicação pedida ou dada.
Deixo-o à escrivaninha e saio do emprego.

Tanto espaço e me sinto prisioneiro. Tanta gente e me sinto sozinho.
Quando era pequeno, costumava achar esquisito o pai dizer a doença da tia Cotinha é solidão. Na casa grande, cheia de avós, tios e primos, como é que a irmã de minha avó podia sofrer de solidão?
Acabou morrendo na cadeira de balanço, num canto da varanda. Nem um gemido. Nada. O crochê caído no colo, o espanto no olho arregalado, o fio de baba no canto da boca...
Só deram por falta no café da manhã. Foram ver no quarto: a cama arrumada, tudo no lugar, janela fechada, vazio, mudo. Aonde foi, o que foi o que não foi, procura daqui e dali... E ela lá. Toda a noite. A linha inútil enroscada nas patas do gatinho. Que pena, ia ficar uma tolha tão linda! Agora ninguém termina! Trabalho perdido.
Tia Cotinha. Solidão.
Tirem as crianças daqui, gritava tia Naná. Olho-a com pena, coitada!
Deixo-a na cadeira e saio da varanda.

Quero comemorar a saída do emprego e telefono-lhe.
Fala depressa, estava no banho e estou com o cabelo cheio de xampu. A voz é rouca e o riso morno. Penso em voltar para casa.
De repente percebo que não sei como dizer que mais uma vez estou desempregado. E que isso me deixa feliz. Não quero ouvir novamente quando é que você vai crescer? Sem crítica, só preocupação. Tentarei justificar-me com a perseguição do chefe, o salário medíocre, o serviço ridículo.... Ela fingirá concordar, passando os dedos entre os meus cabelos, tudo bem, meu filho... Desligo o telefone.
Deixo suas perguntas sem resposta e saio da cabine.

No restaurante estou só. Drinques matutinos não são usuais.
De dia se trabalha, se come, se conversa. À noite se dança, se bebe, se dorme na cama.
A sobremesa depois da comida, o obrigado depois do favor, o desculpe depois da falta, a tranca na porta depois do ladrão.A vida é assim: regulamentada, condicionada, previsível.
Ainda não estamos servindo, moço.
É? Mas eu quero beber um uísque e quero agora. Chamo o gerente e te ponho na rua.
Então, tá!
Neca, esse moleque, quando quer uma coisa, não tem jeito. Já viu que não acata mando, né? As coisas têm que ser do jeito dele. Pode escrever, este meu afilhado vai longe! Nasceu pra chefe! Padrinho falava e o pai inchava de orgulho, apertava as minhas bochechas até doerem.
Sinto um leve torpor. A cabeça flutua. Pesam-me os membros. Sinto vontade de correr para os braços dela, enroscar-me em seu colo, encolher até, penetrando em seu ventre, renascer dela. A ideia da transformação me fascina e me vejo crisálida e borboleta, voando livre, leve, pra longe... Nuvens de pó dourado cintilam ante meus olhos. Não há paredes, o mundo e uma imensa planície.
Aceita alguma coisa para comer?
Peço em filé. Há agora pessoas nas mesas. Conversam, mastigam, espalham nas toalhas migalhas de pão. Acabo de comer e pago a conta. Dou uma gorjeta alta.
Deixo-o sorrindo e saio do restaurante.

Traço linhas sinuosas nas calçadas retas. O movimento contínuo dos carros preenche a larga avenida. Verde vermelho verde... atravesso.
O choque e a dor imensa insuportável verde vermelho verde vermelho quente e viscoso em minha boca empapando a camisa menino babão sujou toda a roupa a sirene as vozes meu deus as mãos o vermelho a ambulância o hospital a enfermeira o cheiro de éter quando é que você vai crescer as mãos no meu rosto os olhos de mel o beijo o frio a escuridão o...
Deixo-a chorando e saio da vida.

E por que não?
IMAGENS: NEIL GAIMAN

Nenhum comentário: