10.8.13

O dia em que seu Gesu dormiu mal










G.G. rolou na cama a noite inteira. Teve pesadelos, calafrios, ondas de calor, dor de cabeça, pontadas no estômago, câimbras nas pernas. Tremeu, suou, gemeu. A pobre de dona Almerinda fez todo o possível para aliviar as agonias do marido, mas não houve chá, remédio, nem carinho que desse jeito. Aflita, corria do quarto para a cozinha e de volta pro quarto. Lá pelas tantas, desistiu. Foi para o sofá da sala e caiu desmaiada de cansaço.
            G.G, como era de se esperar, acordou com a cachorra. Gritou com a empregada por causa do café, fraco, fedorento, insuportável. O filho mais velho ouviu um discurso de hora e meia, como resposta ao seu bom-dia: já estava mais do que na hora de começar a trabalhar, não sou besta de carga de filho boa-vida que só pensa em farra e mulher, na tua idade eu já era dono de fábrica de calçados, comecei meninote, varrendo chão, servindo café... depois, vendedor de sapatos. Não tive essa moleza não, meu pai me trazia na rédea curta... A filha entrou na sala, ouviu, deu meia volta, mas não escapou. Pensa que eu não vi a que horas a senhorita chegou com aquele vagabundo metido a artista, pensa que eu estou cego? Ou me arruma um homem decente, ou te boto num convento, que é lugar de mulher cabeça-de–vento tomar jeito.
            Dona Almerinda achou melhor nem aparecer. Depois de trinta anos de casamento, já conhecia de cor aquelas tempestades. Sempre que os negócios não iam lá muito bem, eram raios e trovões por toda parte, depois tudo se ajeitava e o sol brilhava novamente. Foi para o quarto e voltou a dormir.
            No escritório, onde chegou antes de todos, G.G sentou-se à mesa de trabalho. Estava coberta de papéis. Começou a folheá-los, lendo um a um atentamente. A cada folha virada, sua respiração se acelerava. Em pouco tempo, bufava. Foi quando dona Arlete entrou, trazendo um luminoso sorriso colado à cara.
            —Bom dia, seu Gesu, madrugou hoje, hem? Que foi, deu formiga na sua cama?
            O olhar furibundo de G.G fez dona Arlete engolir em seco.
            —Desculpe, seu Gesu, eu não pretendia...
            —Olha aqui, dona Arlete, eu não lhe dou intimidades para vir à minha sala com gracinhas idiotas. A senhora é paga, e excessivamente bem paga, para fazer seu serviço, que, aliás, pelo que pude ver até agora, está uma bela porcaria!
            —Mas, seu Gesu, eu fiz tudo como o senhor mandou! Separei o balanço do semestre, bati todas as cartas, coloquei as faturas no arquivo... até a sua mesa limpei com óleo de peroba, que, aliás, nem é de minha obrigação fazer, mas fiz por gosto e...
            —Por acaso a senhora não está satisfeita? Acha que com as suas qualificações vai arrumar uma moleza igual a esta e ainda por cima ser paga pra fazer as trapalhadas que tem feito? Se acha, pode ir tratando de procurar outro lugar pra se encostar. E agora dê o fora que eu tenho mais o que fazer.
            Dona Arlete estava lívida, muda de espanto. Os já enormes olhos de ovelha se arregalaram, tentando segurar as lágrimas que boiavam, quase transbordando. Muitas vezes tivera que agüentar o mau humor do patrão, mas ele jamais lhe falara daquela forma grosseira. Saiu rapidamente, levando a porta atrás de si.
            Do outro lado estavam alguns funcionários tomando um cafezinho, batendo um papinho, remanchando por ali naquela de dar um tempo pra preguiça matinal ir embora. Aquele era um hábito de anos na firma e nunca incomodara ninguém. Eram ótimos trabalhadores, funcionários responsáveis e dedicados. O próprio Gumercindo, chofer do patrão, que, além da pouca idade, também estava há menos tempo que os outros a serviço da empresa, levava a sério suas obrigações.
            Quando o estrondo da porta cortou o zunzum das conversas, fez-se um imediato silêncio.Alguns pares de olhos fixaram-se na face pálida de dona Arlete que, de imediato, começou a esbravejar:
            —O que é que está havendo aqui? Pensam que estão na casa da sogra? Pilhas de serviço em cima das mesas e vocês aí de trololó, fazendo cera, enquanto o patrão paga as contas! Muito cômodo!
            —Ô dona Arlete, que qué isso? A gente só tá batendo um papinho, fazendo uma social, enquanto o povo toma um cafezinho esperto que eu fiz, mas já já a gente pega no batente, não precisa ficar nervosa, não. Eu, hein!?
            —Eu, hein? Eu, hein? Que história é essa de eu hein? Preste atenção, seu Honório, não pense que pode ir assim me respondendo não. Que confiança é essa? Mando colocá-lo no olho da rua, tá sabendo? Onde é que já se viu esse abuso? E vamos todos trabalhando, não tem ninguém distribuindo doce aqui não!
            Retirou-se batendo os saltos dos sapatos, deixando todos de boca aberta, sem entender coisa alguma. O Gumercindo, jovem que era e cheio de ideais de justiça, resolveu que aquilo não ia ficar assim. Onde é que já se viu aquela mulherzinha metida a besta, só por ser secretária do patrão, achar que podia ir assim destratando um senhor de idade, ainda mais sendo gentil e bem educado feito o seu Honório? Foi atrás.
            —Ô dona Arlete, que história foi aquela com o seu Honório? Não é direito falar com ele daquele jeito e...
            —Olha aqui, seu moleque, quem você pensa que é pra vir chamar minha atenção? Ponha-se daqui pra fora e não me aborreça, ou vai pra rua junto com ele. Só me faltava essa agora: um motim!
            Dito isso, fechou-lhe na cara a porta da sala.
            Antes que pudesse refazer-se, já o boy vinha dar o recado que o chefe queria que ele levasse o carro para a oficina,  por causa daquele barulho estranho que estava fazendo, desde o dia anterior.
            Bufando de raiva, Gumercindo pegou o automóvel e saiu  disparado. Ia remoendo as palavras da secretária e, na sua indignação, nem reparou quando avançou um sinal.
Acontece que o guarda de trânsito estava atento e viu. Viu e apitou. O rapaz, como se acordasse repentinamente, assustou-se e pisou com força o freio. O carro parou imediatamente. O caminhão que vinha atrás, não. O choque foi grande e o estrago muito maior.
Gumercindo colocou as mãos na cabeça. Desceu, desesperado:
—O patrão vai me matar. Era só um barulhinho estranho e agora...
O guarda não se comoveu nem um pouco. Pediu os documentos, puxou o talão do bolso, a caneta...
O rapaz estava arrasado. Não sabia o que dizer e, muito menos, como contar ao patrão o que acontecera.  Logo ele que era tão cuidadoso, nunca em sua vida estivera envolvido em qualquer confusão de trânsito. E tudo por culpa daquela bruxa mau-caráter. Recebeu os documentos e a multa que o guarda entregou com um sorrisinho que lhe pareceu de deboche.
—Tá rindo de quê? Pensa que eu sou algum otário pra ficar rindo da minha cara? Meu patrão é um homem muito rico e importante e, se ele quiser, te faz engolir essa multa, seu guardinha de m...
Levou um pescoção tão forte que o palavrão entalou na garganta. Foi preso por desacato à autoridade.
Ao final da tarde, o delegado permitiu que ele telefonasse pro patrão. A voz saía tão fraca e tremida, as palavras tão atropeladas que, de início, G.G nada entendeu. Quando finalmente se deu conta do ocorrido, faltou-lhe o fôlego. De repente seu rosto redondo se cobriu de um rubor tão intenso, que parecia um tomatão com nariz. Do outro lado da linha, Gumercindo esperava, temeroso, a reação do chefe. Vendo que ele não se manifestava, perguntou cauteloso:
—Tudo bem, seu Gesu? O senhor entendeu tudo? O que é que eu faço?
Como resposta, ouviu o clic do aparelho sendo colocado no gancho. Em desespero, pensou: “Ele vai me matar”.
G.G. estava a ponto de explodir. Seu coração batia descompassado e ele levou a mão ao peito, como se quisesse fazê-lo acalmar-se. Foi quando sentiu um calafrio. Tinha a impressão de que a temperatura ambiente baixara uns quinze graus. Chegou a olhar para o ar refrigerado, mas viu que estava desligado. Sua raiva foi diminuindo, diminuindo até desaparecer. Passou em revista o que lhe acontecera desde a madrugada daquele dia e concluiu que alguma coisa estava errada. Pensou nos filhos e na mulher, na pobre da dona Arlete. Sentiu-se esquisito, arrependido. Ligou para casa, pediu desculpas à mulher e mandou que ela falasse com os meninos. Ele os amava a todos, não fizera por mal. Ela concordou e disse que estava fazendo torta de maçã para o jantar. Ele adorava.
Mandou chamar dona Arlete. Ela entrou educadamente distante, com um papel na mão.
—Não precisa se preocupar, seu Gesu, eu já fiz a minha carta de demissão. É só o senhor assinar.
—Olha, dona Arlete, eu só mandei chamá-la aqui para me desculpar pelas grosserias desta manhã. Eu não tinha o direito de fazer o que fiz com a senhora. Me desculpe, por favor, os negócios ainda vão me matar. Estou cheio de preocupações...
Desta vez, as lágrimas saltaram dos olhos de ovelha e escorreram pela face.
—Que é isso, seu Gesu, não fica assim não, tudo vai dar certo, o senhor é muito esperto, vai resolver tudo logo, logo. E o que precisar de mim, é só pedir.
Saiu da sala saltitante. Seu Honório comentou:
—Pronto, pessoal, ela agora tá feliz. Vai aí um cafezinho?
Dentro do escritório da chefia, G.G. respirou fundo, satisfeito consigo mesmo.
Um calorzinho bom envolveu sua alma e, bem lá no fundo, ele sentiu uma voz suave que lhe dizia:
—Não é bem melhor assim, Gesu? Vê se aprende, de uma vez por todas, a dominar esse teu gênio. Você tem-me dado um bocado de trabalho!
Ouviu um barulho de bater de asas e uma pena muito fina e muito branca veio cair na mesa bem à sua frente.
Quanto ao Gumercindo, a dona Arlete foi até à delegacia com o advogado da firma e resolveram tudo.
O carro azul foi para a oficina e ele ficou dirigindo o carro esporte vermelho até que o outro ficasse pronto.

Afinal, rico resolve tudo fácil, fácil.