O dia em que seu Gesu dormiu mal
G.G. rolou na cama a noite inteira. Teve pesadelos, calafrios, ondas de calor, dor de cabeça, pontadas no estômago, câimbras nas pernas. Tremeu, suou, gemeu. A pobre de dona Almerinda fez todo o possível para aliviar as agonias do marido, mas não houve chá, remédio, nem carinho que desse jeito. Aflita, corria do quarto para a cozinha e de volta pro quarto. Lá pelas tantas, desistiu. Foi para o sofá da sala e caiu desmaiada de cansaço.
G.G, como era de se esperar, acordou
com a cachorra. Gritou com a empregada por causa do café, fraco, fedorento,
insuportável. O filho mais velho ouviu um discurso de hora e meia, como
resposta ao seu bom-dia: já estava mais do que na hora de começar a trabalhar,
não sou besta de carga de filho boa-vida que só pensa em farra e mulher, na tua
idade eu já era dono de fábrica de calçados, comecei meninote, varrendo chão,
servindo café... depois, vendedor de sapatos. Não tive essa moleza não, meu pai
me trazia na rédea curta... A filha entrou na sala, ouviu, deu meia volta, mas
não escapou. Pensa que eu não vi a que horas a senhorita chegou com aquele
vagabundo metido a artista, pensa que eu estou cego? Ou me arruma um homem
decente, ou te boto num convento, que é lugar de mulher cabeça-de–vento tomar
jeito.
Dona Almerinda achou melhor nem
aparecer. Depois de trinta anos de casamento, já conhecia de cor aquelas
tempestades. Sempre que os negócios não iam lá muito bem, eram raios e trovões
por toda parte, depois tudo se ajeitava e o sol brilhava novamente. Foi para o
quarto e voltou a dormir.
No escritório, onde chegou antes de
todos, G.G sentou-se à mesa de trabalho. Estava coberta de papéis. Começou a
folheá-los, lendo um a um atentamente. A cada folha virada, sua respiração se
acelerava. Em pouco tempo, bufava. Foi quando dona Arlete entrou, trazendo um
luminoso sorriso colado à cara.
—Bom dia, seu Gesu, madrugou hoje,
hem? Que foi, deu formiga na sua cama?
O olhar furibundo de G.G fez dona
Arlete engolir em seco.
—Desculpe, seu
Gesu, eu não pretendia...
—Olha aqui, dona Arlete, eu não lhe
dou intimidades para vir à minha sala com gracinhas idiotas. A senhora é paga,
e excessivamente bem paga, para fazer seu serviço, que, aliás, pelo que
pude ver até agora, está uma bela porcaria!
—Mas, seu Gesu, eu fiz tudo como o
senhor mandou! Separei o balanço do semestre, bati todas as cartas, coloquei as faturas no arquivo... até a sua mesa
limpei com óleo de peroba, que, aliás, nem é de minha obrigação fazer, mas fiz
por gosto e...
—Por acaso a senhora não está
satisfeita? Acha que com as suas qualificações vai arrumar uma moleza igual a
esta e ainda por cima ser paga pra fazer as trapalhadas que tem feito? Se acha,
pode ir tratando de procurar outro lugar pra se encostar. E agora dê o fora que
eu tenho mais o que fazer.
Dona Arlete estava lívida, muda de
espanto. Os já enormes olhos de ovelha se arregalaram, tentando segurar as
lágrimas que boiavam, quase transbordando. Muitas vezes tivera que agüentar o
mau humor do patrão, mas ele jamais lhe falara daquela forma grosseira. Saiu
rapidamente, levando a porta atrás de si.
Do
outro lado estavam alguns funcionários tomando um cafezinho, batendo um
papinho, remanchando por ali naquela de dar um tempo pra preguiça matinal ir
embora. Aquele era um hábito de anos na firma e nunca incomodara ninguém. Eram
ótimos trabalhadores, funcionários responsáveis e dedicados. O próprio
Gumercindo, chofer do patrão, que, além da pouca idade, também estava há menos
tempo que os outros a serviço da empresa, levava a sério suas obrigações.
Quando o estrondo da porta cortou o
zunzum das conversas, fez-se um imediato silêncio.Alguns pares de olhos
fixaram-se na face pálida de dona Arlete que, de imediato, começou a
esbravejar:
—O que é que está havendo aqui?
Pensam que estão na casa da sogra? Pilhas de serviço em cima das mesas e vocês
aí de trololó, fazendo cera, enquanto o patrão paga as contas! Muito cômodo!
—Ô dona Arlete, que qué isso? A
gente só tá batendo um papinho, fazendo uma social, enquanto o povo toma um
cafezinho esperto que eu fiz, mas já já a gente pega no batente, não precisa
ficar nervosa, não. Eu, hein!?
—Eu,
hein? Eu, hein? Que história é essa de eu hein? Preste atenção, seu Honório, não
pense que pode ir assim me respondendo não. Que confiança é essa? Mando
colocá-lo no olho da rua, tá sabendo? Onde é que já se viu esse abuso? E vamos
todos trabalhando, não tem ninguém distribuindo doce aqui não!
Retirou-se batendo os saltos dos
sapatos, deixando todos de boca aberta, sem entender coisa alguma. O
Gumercindo, jovem que era e cheio de ideais de justiça, resolveu que aquilo não
ia ficar assim. Onde é que já se viu aquela mulherzinha metida a besta, só por
ser secretária do patrão, achar que podia ir assim destratando um senhor de
idade, ainda mais sendo gentil e bem educado feito o seu Honório? Foi atrás.
—Ô dona Arlete, que história foi
aquela com o seu Honório? Não é direito falar com ele daquele jeito e...
—Olha aqui, seu moleque, quem você
pensa que é pra vir chamar minha atenção? Ponha-se daqui pra fora e não me
aborreça, ou vai pra rua junto com ele. Só me faltava essa agora: um motim!
Dito isso, fechou-lhe na cara a
porta da sala.
Antes que pudesse refazer-se, já o
boy vinha dar o recado que o chefe queria que ele levasse o carro para a
oficina, por causa daquele barulho
estranho que estava fazendo, desde o dia anterior.
Bufando de raiva, Gumercindo pegou o
automóvel e saiu disparado. Ia remoendo
as palavras da secretária e, na sua indignação, nem reparou quando avançou um
sinal.
Acontece
que o guarda de trânsito estava atento e viu. Viu e apitou. O rapaz, como se
acordasse repentinamente, assustou-se e pisou com força o freio. O carro parou
imediatamente. O caminhão que vinha atrás, não. O choque foi grande e o estrago
muito maior.
Gumercindo colocou
as mãos na cabeça. Desceu, desesperado:
—O patrão vai me
matar. Era só um barulhinho estranho e agora...
O guarda não se
comoveu nem um pouco. Pediu os documentos, puxou o talão do bolso, a caneta...
O rapaz estava
arrasado. Não sabia o que dizer e, muito menos, como contar ao patrão o que
acontecera. Logo ele que era tão
cuidadoso, nunca em sua vida estivera envolvido em qualquer confusão de
trânsito. E tudo por culpa daquela bruxa mau-caráter. Recebeu os documentos e a
multa que o guarda entregou com um sorrisinho que lhe pareceu de deboche.
—Tá rindo de quê?
Pensa que eu sou algum otário pra ficar rindo da minha cara? Meu patrão é um
homem muito rico e importante e, se ele quiser, te faz engolir essa multa, seu
guardinha de m...
Levou um pescoção
tão forte que o palavrão entalou na garganta. Foi preso por desacato à
autoridade.
Ao final da tarde,
o delegado permitiu que ele telefonasse pro patrão. A voz saía tão fraca e
tremida, as palavras tão atropeladas que, de início, G.G nada entendeu. Quando
finalmente se deu conta do ocorrido, faltou-lhe o fôlego. De repente seu rosto
redondo se cobriu de um rubor tão intenso, que parecia um tomatão com nariz. Do
outro lado da linha, Gumercindo esperava, temeroso, a reação do chefe. Vendo
que ele não se manifestava, perguntou cauteloso:
—Tudo bem, seu
Gesu? O senhor entendeu tudo? O que é que eu faço?
Como resposta,
ouviu o clic do aparelho sendo colocado no gancho. Em desespero, pensou: “Ele
vai me matar”.
G.G. estava a ponto de explodir. Seu coração
batia descompassado e ele levou a mão ao peito, como se quisesse fazê-lo
acalmar-se. Foi quando sentiu um calafrio. Tinha a impressão de que a
temperatura ambiente baixara uns quinze graus. Chegou a olhar para o ar
refrigerado, mas viu que estava desligado. Sua raiva foi diminuindo, diminuindo
até desaparecer. Passou em revista o que lhe acontecera desde a madrugada
daquele dia e concluiu que alguma coisa estava errada. Pensou nos filhos e na
mulher, na pobre da dona Arlete. Sentiu-se esquisito, arrependido. Ligou para
casa, pediu desculpas à mulher e mandou que ela falasse com os meninos. Ele os
amava a todos, não fizera por mal. Ela concordou e disse que estava fazendo
torta de maçã para o jantar. Ele adorava.
Mandou chamar dona
Arlete. Ela entrou educadamente distante, com um papel na mão.
—Não precisa se
preocupar, seu Gesu, eu já fiz a minha carta de demissão. É só o senhor assinar.
—Olha, dona
Arlete, eu só mandei chamá-la aqui para me desculpar pelas grosserias desta
manhã. Eu não tinha o direito de fazer o que fiz com a senhora. Me desculpe,
por favor, os negócios ainda vão me matar. Estou cheio de preocupações...
Desta vez, as
lágrimas saltaram dos olhos de ovelha e escorreram pela face.
—Que é isso, seu
Gesu, não fica assim não, tudo vai dar certo, o senhor é muito esperto, vai
resolver tudo logo, logo. E o que precisar de mim, é só pedir.
Saiu da sala
saltitante. Seu Honório comentou:
—Pronto, pessoal,
ela agora tá feliz. Vai aí um cafezinho?
Dentro do
escritório da chefia, G.G. respirou fundo, satisfeito consigo mesmo.
Um calorzinho bom
envolveu sua alma e, bem lá no fundo, ele sentiu uma voz suave que lhe dizia:
—Não é bem melhor
assim, Gesu? Vê se aprende, de uma vez por todas, a dominar esse teu gênio.
Você tem-me dado um bocado de trabalho!
Ouviu um barulho
de bater de asas e uma pena muito fina e muito branca veio cair na mesa bem à
sua frente.
Quanto ao
Gumercindo, a dona Arlete foi até à delegacia com o advogado da firma e
resolveram tudo.
O carro azul foi
para a oficina e ele ficou dirigindo o carro esporte vermelho até que o outro
ficasse pronto.
Afinal, rico
resolve tudo fácil, fácil.
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